16 de out. de 2007

Quem manda na RTP?

Com a devida vénia ao autor original do texto, aqui vai disto:

Os acontecimentos mais recentes que envolveram a RTP, José Rodrigues dos Santos e o Público, com troca de acusações, processos disciplinares, são mais um lembrete da condição de servidão da RTP ao Governo. O presidente do conselho de administração fala do que aconteceu na sua "empresa" e com o seu "empregado", como se estivéssemos perante um mero problema laboral. A linguagem é enganadora porque se se trata de uma "empresa" então a cadeia hierárquica é outra, começa no verdadeiro presidente do conselho de administração, José Sócrates, primeiro-ministro; no administrador executivo, Santos Silva, ministro; e quando se chega ao topo da RTP estamos mais ao nível do director-geral, que depois decide as chefias mais abaixo, incluindo o cargo crucial de director de informação. Esta "empresa" não está no mercado como as outras, não depende da banca, nem dos accionistas, nem da bolsa, pratica concorrência desleal porque a sua existência depende do dinheiro do contribuinte distribuído generosamente pelo Orçamento de Estado, para garantir uma função que tem directa relevância para o poder político e é por ele controlada. A RTP é caríssima, mesmo em tempos de vacas magras como os de hoje, recebe uma fatia de dinheiros públicos pura e simplesmente gigantesca, o que revela bem o carácter estratégico da sua "posse" pelos Governos.



Este conflito da "empresa" com o seu "empregado" José Rodrigues dos Santos volta de novo a colocar a questão mais sensível que afecta a RTP e, por contágio, todo o resto do sistema de comunicação social do Estado, em particular a RDP, que é menos escrutinada, mas que suscita os mesmos problemas da RTP. Consultando uns recortes que tenho guardados pro memoria numa pasta que diz RTP, vejo sem surpresa que muitos dos seus títulos de antigamente podiam encimar as notícias de hoje sem qualquer alteração. Em 1974, 1975, 1976, 1977, 1978, 1979, 1980, 1981, 1982, 1983, 1984, 1985, 1986, 1987, 1988, 1989, 1990, 1991, 1992, 1993, 1994, 1995, 1996, 1997, 1998, 1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006 e 2007, ou seja, desde o século passado até aos dias de hoje, a que se podia acrescentar a RTP salazarista-caetanista, ou seja, desde a fundação, há 50 anos, e poupo-vos da lista de anos anteriores ao 25 de Abril, que as polémicas envolvendo a RTP dizem respeito ao seu controlo pelo Governo, à sua informação governamentalizada, ao seu papel como instrumento de propaganda, como "aparelho ideológico do Estado".



Um exemplo entre muitos do tipo de problemas que envolvem a relação entre o poder político e a RTP: conflito entre trabalhadores da RTP e António Costa, então ministro, em Abril de 2001.

Sabendo-se tudo isto, só se pode concluir que deve haver aqui um pequeno problema estrutural, que passa todas as conjunturas e todos os Governos, não é? Claro que há e esse problema estrutural é a posse pelo Estado, logo pelo controlo governamental, de órgãos de comunicação social. Se isso teve uma justificação histórica nalguns países europeus, nos anos 50, 60 e 70, essa justificação já está há muito ultrapassada quando a evolução tecnológica e a massificação das audiências tornaram a televisão um negócio lucrativo e diversificaram as suas plataformas de modo a fornecerem (pelo cabo, pela Internet) todo um conjunto de opções televisivas plurais e baratas. A manutenção de televisões do Estado, mesmo que já sem monopólio como durante muitos anos aconteceu, é uma sobrevivência do tempo em que fazer e transmitir televisão era difícil e caríssimo, e se justificava que os Governos tomassem a iniciativa de oferecer esse serviço. Mas de há muito que a renitência de vários Governos europeus em não quererem largar a mão das suas televisões "públicas" só tem razões políticas e ideológicas. As primeiras têm a ver com a manutenção de órgãos de informação com agendas que o poder político controla, a segunda, porque socialistas e comunistas defendem um controlo do Estado do espaço público, considerando que a lógica empresarial privada perverte esse espaço e é "moralmente" inferior.

A solução para este tipo de conflitos de 1974, 1975, 1976, etc., etc., é só uma e só depende da vontade política: privatizar a RTP, acabar com a comunicação social pública, que não é uma função que incumba ao Estado, bem pelo contrário, e garantir de outros modos aquilo que se considera ser serviço público, meios mais baratos, mais eficazes e acima de tudo menos manipuladores. Ter "serviço público" não é sinónimo de ter canais "públicos" nem televisão "pública". O "serviço público" não justifica a existência da RTP.

Contrariamente ao que dizem os defensores da televisão pública, não existe nenhum problema técnico inultrapassável, nem nenhuma complexidade essencial: uma vez definido um "serviço público" mínimo (ou até, se quiserem, numa fase de transição, máximo), este pode ser contratado com as televisões privadas a preços infinitamente inferiores ao que custa manter a pesada estrutura da RTP, e sem qualquer prejuízo do telespectador. É interessante ver que, quando se fala da privatização da RTP, há todo um clamor sobre a insuficiência do mercado publicitário para sustentar mais canais televisivos, como se os seus defensores fossem muito sensíveis à saúde do mercado privado, embora se saiba que há candidatos para comprar esses canais. Ao mesmo tempo, a RTP pratica uma concorrência desleal pagando preços exorbitantes para manter o futebol, concursos, séries e outras pièces de résistance destinadas às grandes audiências que são canalizadas para os telejornais.

Depois aparece sempre o argumento dos canais como a RTP Internacional, África, Memória, etc. Os canais especializados podem ser privatizados à parte, e, mesmo que, nos contratos a fazer com privados, as suas actividades se mantenham fortemente subsidiadas, é possível manter os canais que exercem funções de "negócios estrangeiros", e que não são propriamente órgãos de comunicação, como a RTP África. Há mil e uma soluções possíveis para se manter o que é efectivamente "serviço público", mesmo que se aceite uma definição extensiva desse "serviço", sem que o Estado (e o Governo) mantenha órgãos de informação sob o seu controlo, nem o modelo da RTP.

Para além disto tudo, com a televisão a mudar tecnologicamente, não há razão para que o Estado, tão cioso de gastar milhões na sua televisão, não os possa gastar para democratizar o acesso ao cabo e à rede, diminuindo a dependência das emissões de sinal aberto e valorizando as opções plurais dos telespectadores, mantidos sob a hegemonia das televisões generalistas, nas quais a RTP não faz muita diferença da SIC e da TVI. Nada disto, insisto, é impossível, nem sequer muito complexo, exige apenas vontade política, que é o que falta.

Esta mudança não virá do PS e, como as coisas estão, também não virá do PSD. O PS opôs-se à privatização de toda a comunicação social do Estado, se dependesse do PS o Diário de Noticias ainda seria do Estado, e opôs-se ao fim do monopólio da RTP e à criação dos canais privados. O PSD tem oscilado, a ele se deve a liberalização do espaço televisivo, mas no Governo tende a comportar-se como o PS no controlo da informação pública. Com Marcelo e Marques Mendes defendeu-se a privatização da RTP, mas duvido que a actual direcção do PSD mantenha esta política. Quanto ao PCP, por ele não havia televisão privada e o PP tem uma posição pouco clara, embora se possa admitir que evolua para uma postura mais liberal.

Resta a opinião pública, cada vez mais sensível à manipulação política da RTP e por isso susceptível a uma exigência democrática e liberal de retirar tudo o que diga respeito à informação e comunicação das mãos do Governo. O conflito entre a "empresa" e o seu "empregado" José Rodrigues dos Santos é, apesar de todas as ambiguidades de cada uma das partes, incómodo por isso mesmo: mostra quem manda na RTP.

(No Público de 13 de Outubro de 2007.)

in http://abrupto.blogspot.com/

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